Divulgação/TV Brasil
Zico, 70 anos
- Heraldo Palmeira
Chega aos 70 anos cercado de glórias um garoto do subúrbio carioca de Quintino Bocaiuva. Arthur era apenas o menino franzino que nasceu em 3 de março de 1953 numa família comandada pelo pai português, de Tondela – pequena cidade de pouco mais de 5 mil habitantes, no distrito de Viseu, província da Beira Alta –, onde havia muita gente jogando bola: o pai Antunes, goleiro, e os irmãos mais velhos Antunes, Nando e Edu.
O patriarca Antunes quase foi parar no Flamengo, mas recuou porque o patrão vascaíno ameaçou apresentar o “bilhete azul” da demissão. Assim, Antunes indicou para a vaga Jurandyr – seu reserva no Clube Municipal –, que terminou campeão na Gávea.
O futebol começou a entrar de verdade na casa dos Antunes Coimbra quando Eduzinho passou a dar show como profissional da bola pelo América (RJ), em 1966. O mais novo, franzino, era chamado de Arthurzinho e, menor ainda, Arthurzico. Até que uma prima chamada Ermelinda Rolim reduziu ao tamanho certo para o mundo: Zico. Curto e ágil, como ele seria em campo.
O menino franzino começou a jogar bola no time de futebol de salão Juventude de Quintino, formado por familiares e amigos. Depois vestiu a camisa do River Futebol Clube, do vizinho bairro da Piedade. Um belo dia, fez 10 dos 15 gols na vitória do seu time por 15×3. Na plateia estava o radialista Celso Garcia, amigo da família. Impressionado com o espetáculo, levou o menino para a Gávea. Transcorria 1967 e estava iniciando a maior história de amor entre um jogador de futebol e a camisa do Flamengo.
Desde que chegou ao clube, teve início um longo e diário tratamento para que ganhasse musculatura. Em 1969, foi enviado por empréstimo com outros jogadores da base para um período de testes no Fluminense de Feira de Santana, onde poderiam ganhar experiência. Não demorou na Bahia, reprovado pelo porte físico, e retomou as atividades na escolinha do Flamengo até assinar o primeiro contrato profissional, em 1973.
Ainda vinculado ao time juvenil, estreou no time principal em julho de 1971. Tinha 18 anos e do outro lado do campo estava o Vasco da Gama, eterno rival rubro-negro. Escalado pelo técnico Freitas Solich, entrou em campo com a camisa 9 jogando pela ponta-direita. Foi dele o passe para Fio Maravilha fazer o 2×1 salvador e garantir o bicho da vitória – algo que ele mesmo faria muitas vezes naquele mesmo Maracanã. Seu primeiro gol no profissional foi exatamente contra o Vasco.
Naqueles tempos, as preliminares no Maracanã já eram um bálsamo para a Magnética, encantada com a bola daquele moleque dos juvenis. Não demorou, o lendário radialista Waldir Amaral – titular do microfone do futebol da rádio Globo na fabulosa dupla com Jorge Curi – tascou no menino o apelido de Galinho de Quintino. Há quem diga que o motivo foi o porte franzino e o apelido Galinho era coisa dos colegas, outros garantem que o jeito de andar deu o mote para Amaral, que completou com Quintino para conferir a devida individualidade.
Seja qual for a verdade, a partir de 1974 o Galinho de Quintino virou titular absoluto da camisa 10, elevando ainda mais o grau de manto sagrado que ela tinha. Era bom demais ouvir pelas ondas do rádio o flamenguista roxo Jorge Curi encher os pulmões para narrar os avanços de Zico no ataque: “Vai dragando pela direita o Galinho de Quintino, entre a linha lateral de campo e a área perigosa, entrou na Zona do Agrião, driblou, vai bater, chutou…”. Os microfones de campo eram abertos e depois de alguns segundos de explosão da torcida, a voz de trovão completava “É gooooooooool” numa duração incomum do grito que só faltava balançar as redes outra vez! E ficava ainda mais colossal quando soltava o inesquecível “Gooooooooool-aço-açoooooooooo!”, acentuando firme a letra “a”, que ele criou e eternizou, mas só usava para os gols mais bonitos – quase redundância na carreira de Zico.
A Seleção Brasileira foi uma consequência natural, mas seus críticos insistem no argumento de que nunca ganhou uma Copa. Os mais sensatos nem costumam ir muito longe, sequer se dão ao trabalho de revirar a história do futebol. Olham para a própria Gávea, lembram de três jogadores que passaram pelo clube (com o amor da torcida) e foram campeões mundiais: Zagalo, Brito e Dario. É de matar qualquer termo comparativo. E quem preferir elevar o nível da prosa pode incluir na lista Cruyff, Di Stéfano, Puskás, Yashin, Zizinho, Sadio Mané, Mohamed Salah, Cristiano Ronaldo, todos jogadores soberbos. A fila é enorme e Messi escapou por pouco!
Zico se transformou no maior jogador da história do Flamengo e um dos grandes do mundo, a ponto de muitos o considerarem o maioral de todos… obviamente depois de Pelé. Tanto que chegou a ser chamado de Pelé Branco.
Sua passagem pela Itália é lembrada até hoje e em 1983 – ano da sua transferência do Flamengo para a Udinese –, foi o primeiro brasileiro eleito Jogador do Ano pela prestigiosa revista inglesa World Soccer.
Esteve no Japão como jogador, treinador e dirigente, mudou a relação do país com o futebol e seu nome é uma verdadeira instituição por lá.
Outro ponto de grande destaque na vida do jogador são suas qualidades pessoais, como bem destaca o jornalista Ruy Castro, flamenguista profissional: “Muitos livros contam a história de Zico em campo. Um dia talvez tenhamos um sobre o homem Zico e como ele nunca deixou que a glória disputasse espaço com sua família, seu caráter e sua dignidade. Mesmo ainda na ativa, já conquistara o respeito e a admiração dos torcedores dos times que derrotava. Encerrado o futebol, isso se cristalizou em devoção a cada passo que dá na rua, na forma de abraços, apertos de mão e palavras de gratidão. Todos são gratos a Zico por ele ser quem é”. Ainda mais nestes tempos em que, como também ressalta Castro, “o futebol às vezes se transfere para o noticiário policial e expõe o repulsivo lado B de certos jogadores”.
Com uma vida repleta de números superlativos e conquistas dentro de campo, Zico também acumula passagens especiais em sua história. Seu pai José Antunes Coimbra, flamenguista fanático, começou a evitar os estádios na exata proporção em que seu caçula virava um menino deus do futebol. Foi a maneira que encontrou para fugir de grandes emoções que pudessem ampliar seus problemas cardíacos. Com o passar do tempo, sequer ligava o rádio, fingia ignorar os jogos.
Sua mãe, a brasileira Matilde da Silva Coimbra, costumava ir aos estádios na companhia da grande amiga Neusa Maia de Oliveira, inclusive nos clássicos contra o Vasco. Ela era simplesmente a mãe de Carlos Roberto de Oliveira, ele mesmo, o Roberto Dinamite, ídolo do principal adversário e concorrente direto em títulos e na artilharia dos campeonatos, considerado o maior jogador da história de São Januário. As duas mulheres ficavam juntinhas na arquibancada desde que seus meninos jogavam nos juvenis. Bons tempos aqueles, em algumas ocasiões o time cruz-maltino utilizava a Gávea para treinar.
A amizade das mães fez dos filhos dois grandes amigos, a ponto de Zico vestir a camisa do Vasco em pleno Maracanã, juntamente com Júnior, quando Dinamite se despediu dos gramados em 25 de março de 1993. Claro, vestiu a 9 alvinegra para que o amigo Bob envergasse a 10 que também o consagrou.
Já aposentados, os dois visitavam o Maracanã (2014) reformado para a Copa do Mundo. Ao sair do túnel, ouviram de funcionários do estádio que não poderiam pisar no gramado. O Galinho rebateu de bate-pronto: “Se eu e o Bob não pudermos pisar, fecha as portas disso daqui”.
Bendisse cantando Jorge Ben Jor em Camisa 10 da Gávea, “mesmo quando não está inspirado ele procura a inspiração”. Obrigado, Galo!
Assista aqui
Camisa 10 da Gávea https://www.youtube.com/watch?v=BylyV8QSx9s&t=11s